Saudades do Matão – Feliz 89 anos!, Veizico.

Fotos do sertão mineiro no ano 2000:

Lajinha - pan da região

Cerrado mineiro. Município de Itaguara.

Distrito da Jacuba; município de Itaguara (MG).

Distrito da Jacuba; município de Itaguara (MG).

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ALÉM de suas próprias histórias, músicas carregam casos de muita gente – alguns nunca contados.

A valsa “Francana”, por exemplo, foi composta em 1908, teve seu nome trocado para Saudades de Matão em torno de 1912, recebeu letra em 1938, chegou à Lajinha no final da década de 1950, com Tonico e Tinoco na vitrola do Curiango, hoje o Veizico, e segue o seu curso cheio de casos.

Um desses casos, que é parte da história do Curiango, eu vou contar aqui:

QUASE sempre à noite é que ele chegava de suas andanças, quebrando o silêncio da casa com os pesados passos de suas botas, anunciando pelo menos às crianças de até 5 ou 6 anos que o enérgico chefe da família reassumia seu posto. Era a hora do ameaçado acerto de contas com quem havia feito alguma coisa errada.

Sede da Lajinha, com pau de óleo onde crianças brincavam de balanço na década de 1950.

Sede da Lajinha. Em 1º plano, o pau de óleo onde crianças brincavam de balanço na década de 1950.

—Cê vai ver. Vou falar com seu pai! — ameaçava a Concinha, quando não encontrava outros meios para controlar a criançada.

Depois das chegadas, mesmo se nada houvesse de errado, os dias se seguiam sem diálogos com o temido Curiango, nem à cerca das andanças, nem nada. As viagens, curtas ou ligeiramente longas, eram um mistério que às crianças não cabia entender. Hoje eu sei que nelas o Curiango comprava e vendia pequenas partidas de gado, para obter algum lucro. Eventualmente ele aparecia em nossa precária propriedade rural com alguns garrotes ou bezerros que não havia conseguido revender, mas logo eram passados pra frente por causa da má qualidade das pastagens daquele pedaço de cerrado itaguarense.

O apelido “Curiango” só era usado por nosso amado vizinho e tio emprestado, o Chiquinho Costa, que nos voos mais longos do Curiango, contribuía com os trabalhos da rotina do ninho repleto de crianças e de adolescentes ___ Descascar e debulhar milho, levar ao moinho, tratar dos porcos, apartar vacas e bezerros, tirar o leite…

Chiquinho Costa talvez não aprovasse, mas também não protestava contra o modo de vida de seu amigo e concunhado, o Curiango, que era como a ave: misteriosa e notívaga, como diria o erudito Marcelão.

Dor nas cadeiras, ou na escadeira, se considerarmos alguma semelhança entre uma coluna vertebral humana e uma escadaria; vista deficiente em consequência de pó de telha caído em seus olhos, eram algumas das alegações do Curiango para evitar os trabalhos pesados da roça. Já o Chiquinho Costa não: era um homem forte, cheio de saúde e disposto ao trabalho pesado.

­Depois de uma de suas ausências, o Curiango foi visto com um acordeom vermelho de 80 baixos, instrumento em que ele logo aprendeu tocar Saudades do Matão, inspirado por Tonico e Tinoco. O acordeom, como bem mais tarde vim a saber, havia sido trocado por uma velha cabeça de jegue que ele tinha há mais tempo. Cabeça de jegue é como eram chamadas aquelas sanfoninhas de 8 baixos, com botões no lugar das teclas. Já o acordeom não! Era a rainha das sanfonas, com sua brilhante carenagem vermelha cristalizada, a coisa mais linda de nosso mundo. Era, para todos nós, um substantivo feminino. “A acordeom.” Mas ninguém podia por a mão.

Em algumas andanças o Curiango levava sua vitrola, seus discos e seu acordeom, provavelmente para misturar diversão e negócios, já que ninguém é santo, nem de ferro. Muito menos o Curiango! Quando o acordeom era deixado em casa, o corajoso Cu Branco, ao arrepio da autoridade totalitária do pai, apesar de seus apenas 5 ou 6 anos, ousava mexer no instrumento, certamente em conluio com a mãe, irmãs e irmãos mais velhos. Tanto o fez até aprender, como o pai, a correr o polegar e o indicador nas alvas teclas, conseguindo tocar a Saudades do Matão, mesmo que usando apenas as teclas brancas e dois dos 80 baixos.

Corajoso nem tanto, obviamente o pequeno Nenen (o Cu Branco) cagava de medo de o Curiango descobrir a façanha. Quando ficou sabendo, o Curiango fez vistas grossas e não ralhou com ninguém. Aliás, bater ele raramente batia. No máximo dava algumas sacudidas nas crianças entre suas pernas, seguidas de um baixo, mas enérgico “cala já”, que nos fazia engolir até soluços. Além disso, nada era necessário, pois as crianças mijavam de medo só de ouvir os passos pesados das botas que chegavam de viagem ou das botinas usadas nos dias seguintes.

—Não quero moranga amassada; quero é ovo de verdade.

—É o Letorelo outra vez! É gema de ovo, ó!

—Não! É moranga amassada. Eu quero é ovo!

Nestas alturas, se as botinas se aproximassem da cozinha, acabava logo a polêmica. É certo que Concinha, a boa mãe, sempre que podia, protegia suas crias, mas os ovos precisavam ser juntados para serem negociados com o mascate, mais citado como Comprador de Ovo. De tempo em tempo o Comprador de Ovo passava pelas casas da roça em sua mula, tocando um jumento abarrotado de mercadorias para venda ou troca.

Concinha vendia ou trocava os ovos por coisas raras ali na roça, como retalhos para vestir e agasalhar as crianças, molduras com desenhos do Sagrado Coração de Jesus, de santos e de santas, para expor nas paredes como alimento da fé e da devoção. Tinha aquele quadro em curiosa moldura 20×25 em 3D, com a terceira dimensão formada por réguas paralelas de vidro, dispostas entre o vidro da frente e o desenho de Nossa Senhora no fundo. Um só quadro mostrava três das Nossas Senhoras que protegiam a família: uma era vista do ponto frontal ao quadro, outra do ponto de vista da esquerda e outra da direita.

Mas, voltando ao acordeom… anos depois do aprendizado clandestino, já tendo se mudado para Itaguara com a família, o pequeno Nenen (o Cu Branco) chegou a se apresentar para grande público, tocando Saudades do Matão numa mostra coletiva de habilidades infanto-juvenis. Ele já tinha nove anos de idade, mas com aspecto de sete. Ninguém entendeu como é que ele, sentado em uma cadeira, diante do repleto Cine Teatro Regina, conseguia sustentar sobre suas finas pernas aquele belo instrumento que tapava todo o seu corpo magrinho e muito branco, e ainda conseguia abrir e fechar o fole.

Todo mundo só via aquelas mãozinhas correndo no teclado, e cantava acompanhando o solo das teclas brancas e de dois dos 80 baixos: “Quando lá no céu, surgir (…)”. Teve até bis exclusivo no final do evento.

Já o Curiango, que geralmente em casa não fazia graça, diante de alguma visita ilustre chegou a tocar e a cantar sua melodia predileta, a emocionante Saudades do Matão. A ele associo mais a primeira estrofe: “Neste mundo eu choro a dor / de uma paixão sem fim (…)”, correndo os dedos sobre o alvo teclado.

Tempos depois (e sempre alguma coisa acontece tempos depois), já em Belo Horizonte, com a voz pastosa de quem não consegue esconder as pingas que bebe, mas nunca deixa aparecer os tombos que leva, certa vez o Curiango me disse que tinha uma paixão.

—Por que tanta bebida?, meu pai!

—Meu filho, eu tenho uma paixão.

—Que paixão? Pensei. Mas não cheguei a perguntar. Primeiro porque não me era dado tal atrevimento. Segundo porque tive medo de não saber administrar resposta. Eu já havia passado da adolescência, mas ainda era muito retardado para entender as profundezas do amor; para entender que uma paixão é uma coisa que pode ser resolvida; para entender que uma paixão pode ser não somente por uma mulher, ou por um amor proibido; mas que pode ser também por um mundo diferente, por um lugar, por uma paisagem maravilhosa, por um ideal, por um estilo de vida…

Hoje, depois de 89 anos de altos e baixos, certamente mais baixos que altos, pode haver alguém com habilidade suficiente para abrir a caixa preta de uma paixão sem fim, ou talvez seja melhor deixá-la fechada como sempre foi.

Sabe-se lá quanta tormenta um coração aguenta! Diz Machado de Assis que os suicídios ocorrem menos pela gravidade dos fatos que pela interpretação momentânea. O que pode ser grave em certo momento pode não passar de uma piada em outro. Depende do estado de espírito do protagonista na hora da constatação do fato.

É cruel imaginar que o sofrimento se serve ao aperfeiçoamento.

Sempre haverá a dúvida se a pessoa que sofre mais é a que ama sem ser correspondida ou a que aceita ser amada sem correspondência.

Contudo, quase ninguém quer que a sorte lhe tire desta grande dor, mesmo que o alívio prometa o surgimento, lá no céu, de uma peregrina flor.

 

 

Abril de 2013 – Clique para ouvir novamente “Saudades de Matão”:

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